Os desastres de Sofia
In A Legião Estrangeira.São Paulo, Ática, 1977, p. 11-25
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o
abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso
primário: era tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e
silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó
na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso
e romano. E eu era atraída por ele. Não amor,
mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele
tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto,
mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
— Cale-se ou expulso
a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto
que se tornara doloroso para mim ser o objeto do
ódio daquele homem que de certo modo
eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente
proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De noite, antes de dormir, ele me irritava.
Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não
quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na
boca, em glória de martírio, a acidez insuportável da begônia quando ê esmagada
entre os dentes; e roia as unhas, exultante. De manhã, ao atravessar os portões
da escola, pura como ia com meu café com leite e a cara lavada, era um choque
deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por um abismal
minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em
profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã – como se eu
não tivesse contado com a existência real daquele que desencadeara meus negros
sonhos de amor – de manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em
choque eu era jogada na vergonha, na perplexidade e na assustadora esperança. A
esperança era o meu pecado maior.
Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara
pela salvação daquele homem. Eu
queria o seu bem, e em resposta ele me odiava.
Contundida, eu me tornara o seu
demônio e tormento, símbolo do inferno que devia
ser para ele ensinar aquela
turma risonha de desinteressa- dos. Tornara-se
um prazer já terrível o de
não deixá-lo em paz. O jogo, como sempre,
me fascinava. Sem saber que eu
obedecia a velhas tradições, mas com
uma sabedoria com que os ruins já nascem
– aqueles ruins que roem as unhas de espanto –, sem saber
que obedecia a uma das coisas que mais acontecem
no mundo, eu estava sendo a
prostituta e ele o santo. Não,
talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam,
e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter
dito. Ou, pelo menos, não era apenas
isso. Meu enleio vem de que um tapete
é feito de tantos fios que não posso
me resignar a seguir um fio só;
meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas
altas geleiras. Assim, pois, não falarei mais no
sorvedouro que havia em mim
enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão
eu mesma terminarei pensando que era
apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha
desesperada abnegação. Eu me tornara
a sua sedutora, dever que ninguém me impusera.
Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefa de
salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e crianças daquele tempo eu
era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”, como dizia nossa empregada. Mas era como
se, sozinha com um alpinista
paralisado pelo terror do precipício,
eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer. O professor tivera a falta de
sorte de ter sido logo a mais imprudente
quem ficara sozinha com ele nos seus
ermos. Por mais arriscado que fosse
o meu lado, eu era obrigada a
arrastá-lo para o meu lado, pois o dele era mortal.
Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande
pela aba do paletó. Ele não olhava
para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim com um
safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu
único instrumento era a insistência. E disso
tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu
mesma sabia ao certo o que fazia, minha
vida com o professor era invisível. Mas
eu sentia que meu papel era ruim e
perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida,
vida real que tardava, e pior que inábil, eu também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria
o que eu era porque só Ele sabia
do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d'Ele. Ser matéria de Deus era a
minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas
pela matéria d'Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão do que
eu não conhecia e a ela me confiava
toda, com segredos de confessionário. Seria para as escuridões da ignorância
que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira alegre e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos igualmente
monstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu
paletozinho apertado, minhas gargalhadas só conseguiam fazer com que ele,
fingindo a que custo me esquecer, mais contraído ficasse de tanto autocontrole.
A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me detestava.
Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza
impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de
torná-lo infeliz já me tomara demais.
Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos
sempre cambaios, humilhada por não ser uma
flor, e sobretudo torturada por uma infância
enorme que eu temia nunca chegar a um fim – mais
infeliz eu o tornava e sacudia com altivez
a minha única riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia
bonitos com permanente e que por conta do futuro
eu já exercitava sacudindo-os.
Estudar eu não estudava, confiava na minha
vadiação sempre bem sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que
não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de
história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza,
refinamento que eu já descobrira;
havia meninos que eu escolhera e que não me
haviam escolhido, eu perdia horas de sofrimento porque eles eram
inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava
permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido
era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o
professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de
graça que mais parecia o resultado
de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era
emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas – na minha pressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada, selvagem e suave, com olhos pensativos
embaixo da franja pesada, esse
retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha
que eu não compreenderia se fosse a
sua mãe. Só muito depois, tendo
finalmente me organizado em corpo e
sentindo-me fundamentalmente mais garantida,
pude me aventurar e estudar um
pouco; antes, porém, eu não podia me arriscar
a aprender, não queria me disturbar
– tomava intuitivo cuidado com o que eu
era, já que eu não sabia o que era,
e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o professor não
ter chegado a ver aquilo em que
quatro anos depois inesperadamente eu me tornaria:
aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez
dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já não era mais um moleque e sim uma jovem
digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que
é?”, indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o professor morrera naquela
madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a
de uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que
contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o professor
mandara, ponto de desenlace dessa história e começo de outras. Ou foi apenas
por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no parque.
– Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a
composição. Mas usando as palavras de
vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir
para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que
descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa,
saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e
continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a
sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer, começara a plantar no seu
pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que
terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de
desprezo, ostensivamente brincando com o lápis,
como se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele
era. Ele contara sem olhar uma só vez para mim.
É que na falta de jeito de amá-lo
e no gosto de persegui-lo, eu
também o acossava com o olhar: a tudo o que ele
dizia eu respondia com um
simples olhar direto, do qual
ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem
límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o
crime. E conseguia sempre o mesmo resultado:
com perturbação ele evitava meus
olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me amaldiçoava.
E de piedade. O que por sua vez me irritava.
Irritava-me que ele obrigasse uma
porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade,
tinha o maior campo de recreio que já vi. Era
tão bonito para mim como seria para um esquilo ou um
cavalo. Tinha árvores espalhadas,
longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era
longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para montes
de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós
comíamos, para sol e sombras onde as abelhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido
por nós: já tínhamos rolado
de cada declive, intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido
de várias flores e em todos os troncos
havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas
ali faziam o seu mel.
Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras
escondidas já me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia “usar minhas próprias
palavras”, escrever era simples. Apressava- me também o desejo de ser a
primeira a atravessar a sala – o professor terminara por me isolar em
quarentena na última carteira – e entregar-lhe insolente a composição,
demonstrando-lhe assim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial para
se viver e que, eu tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me
olhar. Melindrada, sem um elogio pela minha velocidade, saí pulando para o
grande parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias
palavras era igual à que ele contara. Só que
naquela época eu estava começando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santificava, mais tarde ameaçaria
sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as frases
finais. Frases que horas depois eu lia e
relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a ponto de enfim ter
provocado o homem de um modo como eu
própria não conseguira até então. Provavelmente o que o professor quisera
deixar implícito na sua história
triste é que o trabalho árduo era o único modo
de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se
disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi exatamente
isso. Não consigo imaginar com que
palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado.
Suponho que, arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de
algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas,
as únicas a que eu aspirava. É possível
também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável
esperança, e que eu já tivesse
iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse
dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com
um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio
inútil de ter sido a primeira, ciscando a terra, esperando impaciente pelos
meninos que pouco a pouco começaram a surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na
minha carteira não me lembro o quê, para mostrar ao caseiro do parque, meu
amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de uma felicidade irrepresável
que se fosse em casa me valeria uns tapas – voei em direção à sala de aula,
atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os
cadernos empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e
iniciando outra corrida de volta – só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra:
ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos
frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus passos, de vagarosos,
quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio
cochichado da classe, sem a
admiração que minha afoiteza provocava. Tentei
sorrir, sentindo que o sangue me sumia
do rosto. Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me
toda como a de um gato que sem
pressa prende o rabo do rato. A gota
de suor foi descendo pelo nariz e
pela boca, dividindo ao meio o meu
sorriso. Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos
baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já
perdera os contornos. Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora,
ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e
duras, eu sentia a parede dura na palma
da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder
alcançar o âmbito da porta – de onde eu correria, ah como correria! a me refugiar no meio de meus iguais,
as crianças. Além de me concentrar no sorriso, meu zelo minucioso era o
de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de
um perigo do qual tudo o mais eu
desconhecia. Foi num arrepio que me adivinhei
de repente como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando
devagar na ponta dos pés, e com um
sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara
a sala em silêncio, e mesmo os
ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado
de fora do silêncio. Cheguei finalmente à porta, e o
coração imprudente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco mundo
que dormia.
Foi quando ouvi meu
nome.
De súbito pregada ao chão,
com a boca seca, ali fiquei de costas para ele
sem coragem de me voltar. A brisa que vinha pela porta
acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar, contendo dentro dos
punhos cerrados o impulso de correr.
Ao som de meu nome a
sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi
que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena,
sonâmbula, sozinha, diante daquilo a
que a minha fatal liberdade finalmente me levara.
Meu sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés
endurecidos no chão e um coração que
de tão vazio parecia morrer de sede.
Ali fiquei, fora do alcance do homem. Meu coração morria de sede, sim:
Meu coração morria de sede.
Calmo como antes de
friamente matar ele disse:
—
Chegue
mais perto . . .
Como é que um homem
se vingava?
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que
eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta
uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente
adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte de compacta
tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um
arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a
ignorância, que até então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai
estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.
—
... Pegue o seu caderno ..., acrescentou ele.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo.
Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase mais chocante que o meu
susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão gaguejante.
Mas o professor ficou
imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando
lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca
tinha visto seus olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas baratas
doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem.
Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida
porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos
despenteados como se tivesse acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada?
Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperança era que
ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na
verdade eu nunca soubera.
—
Como é que lhe veio a idéia
do tesouro que se disfarça?
—
Que tesouro? – murmurei
atoleimada. Ficamos nos fitando em silêncio.
—
Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir qualquer falta, implorando-lhe que
meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de culpa, que a tortura
eterna fosse a minha punição, mas nunca
essa vida desconhecida.
— O tesouro que está
escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe disse isso?
O homem enlouqueceu,
pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita, sem
compreender, e caminhando de inesperado a inesperado,
pressenti no entanto um terreno
menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo
quando mancava, e me refiz logo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu
erro!” Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia
segurança, eu no entanto já me levantara
o bastante da minha queda para poder sacudir,
numa imitação da antiga arrogância, a futura cabeleira ondulada:
—
Ninguém, ora ..., respondi mancando. Eu mesma inventei,
disse trêmula, mas já recomeçando
a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o
intrigada, de viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara
a me amedrontar, tinha ameaças novas
que eu não compreendia. Aquele olhar que não me
desfitava – e sem cólera ... Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o
surpreendida. Que é que ele queria de
mim? Ele me constrangia. E
seu olhar sem raiva passara a me importunar
mais do que a brutalidade que eu
temera. Um medo pequeno, todo frio e
suado, foi me tomando. Devagar, para ele não perceber, recuei
as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até não
ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
E meu estômago se
encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina
muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi.
Eriçada, prestes a vomitar, embora
até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto
numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era
anônimo como uma barriga aberta
para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara – o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele,
vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta – mas essa coisa que em muda catástrofe se
desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um
fígado ou um pé tentassem sorrir, não
sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho
curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro
lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que
era tão incompreensível como um
olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel.
Com suas lágrimas orgânicas.
Por si mesmo o olho chora, por si
mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e
em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que
estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas
sorrindo. Via sua apreensão extrema
em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem
entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua
barriga aberta, e que recebesse o seu
peso de homem. Minhas costas
forçaram desesperadamente a parede, recuei –
era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento
do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente
tentar se erguer como um grande
morto-vivo ... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo
demais de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque
eu era forte. “Mas e eu?”, gritei
dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à minha fraqueza!”
Eu o olhava surpreendida, e para sempre não
soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
Então ele disse,
usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
—
Sua composição do tesouro
está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você ... – ele nada
acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo
como se ele fosse o meu coração. – Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os
olhos, sem poder sustentar o olhar indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha
impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele
de algum modo havia confiado em mim,
e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu
pensava que tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência
atormentada do pecado me redimia do
vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os
meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo:
eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por
eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia,
viver errado me atraía. Eu bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa.
Mas, olhando-o, desanimei: faltava-me a coragem de desiludi- lo. Eu já me habituara
a proteger a alegria dos outros, as de meu pai,
por exemplo, que era mais desprevenido
que eu. Mas como me foi difícil
engolir a seco essa alegria que tão
irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o
prato de comida sem perceber que lhe haviam
dado carne estragada. O sangue me subira
ao rosto, agora tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo
se transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as
luzes de minha casa.
—
Você – repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com encantamento o que lhe viera
por acaso à boca –, você é uma menina
muito engraçada, sabe? Você é uma doidinha ..., disse usando outra vez o sorriso como um
menino que dorme com os sapatos novos. Ele nem
ao menos sabia que ficava feio quando
sorria. Confiante, deixava-me ver a sua feiúra, que era a sua parte mais inocente.
Tive que
engolir como pude a ofensa que ele me fazia
ao acreditar em mim, tive que
engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”, pudesse eu lhe gritar, “essa história de tesouro
disfarçado foi inventada, é coisa só
para menina!” Eu tinha muita consciência
de ser uma criança, o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera
tanta fé em um dia crescer – e aquele
homem grande se deixara enganar por uma menina
safadinha. Ele matava em mim pela
primeira vez a minha fé nos adultos:
também ele, um homem, acreditava
como eu nas grandes mentiras ...
... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não
suportei um instante mais – sem ter pegado o caderno corri para
o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os dentes. Com a mão na boca,
horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a
que não pede mais – eu corria, eu
corria muito espantada.
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de
redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia
com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem
de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma
suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por
ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu
amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem
candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência ...
Com a mão apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.
Quando enfim me dei
conta de estar bem longe da órbita do professor,
sofreei exausta a corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no
tronco de uma árvore,
respirando alto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do tronco, os dedos mecanicamente passando e
repassando pelo duro entalhe de um coração
com flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco
mais: estaria ele querendo dizer que
... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera... Oh não,
não, coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara ...
de quê? de que precisara ele? ... que até eu me
transformara em tesouro.
Eu ainda tinha
muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar
o fôlego, e empurrando com raiva o
tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do mundo.
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando
mais vagarosos, excessivamente
cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das
árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco
deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda estranha fatigava meu
coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito
cansado como a de uma virgem
anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça
finalmente humilde que de muito longe talvez
lembrasse a de uma mulher. A copa das
árvores se balançava para a frente, para trás. “Você é uma menina
muito engraçada, você é uma doidinha”,
dissera ele. Era como um amor.
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos
outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se
rói a vida – só naquele instante de mel e
flores descobria de que modo eu curava: quem me
amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância com
suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida
inevitável – que podia eu fazer? eu já sabia
que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem
tivera naquele momento. Pelo menos
uma vez ele teria que amar, e sem
ser a ninguém – através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse
a sua única vantagem: tendo apenas a mim, e
obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara
pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo;
inalcançável pelo amor era o feio, amar
o impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele
recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos.
Entendi eu tudo isso? Não. E não sei o que na
hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com
aterrorizado fascínio o mundo – e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi – assim eu nos entendi, e nunca
saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que eu tenha
entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali
em pé – numa solidão sem dor, não menor que a das árvores – eu recuperava
inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível. Ali estava eu, a menina
esperta demais, e eis que tudo o que
em mim não prestava servia a Deus e
aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por
isso ele me anunciara. Ele acabara de me
transformar em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do
rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia
de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se
para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da
dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais,
responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem?
Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os
lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.
... E foi assim que no grande parque do colégio
lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não
merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um
dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu
coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e
sem nojo de meu grito.