O fio das missangas
Mia Couto
Peixe
para Eulália
A seca durava há anos. Sem pingo, sem lágrima, sem gota.
Estranhava-se a tanta agrura daquela estiagem. Só podiam ser as irrazoáveis
razões. Tudo isso desacontecia em Nkulumadzi.
Pediram parecer a Sinhorito. Era um tresandarilho, incapaz
de solver nenhum problema. Que a simples existência era, para ele, uma
insuperável dificuldade. Só podia ser por brincadeira que lhe pediam explicação
para a não comparência da chuva. Mas foi a ele que se dirigiram para saber da
razão daquele destempero do tempo. Sinhorito nunca tinha sido consultado nem
para secundar opinião de outro. Quanto mais para dar parecer. Ficou insdrúxulo,
a debicar luzes dentro da cabeça. Nem emitiu boca, nem autorizou mosca.
-
Calem
para ouvirmos bem o que ele vai falar!
A risada esperava, no arco tenso da multidão.
Necessitava-se de um escape para o destino. Um bode respiratório. Sinhorito era
conhecido por não ter sabedoria de nada. Única especialidade que dele se dizia:
seus olhos seriam portáteis, de tirar e aplicar.
O próprio proclamava: que ele, sempre que lhe dava a gana,
arrancava os globos oculares e os escondia nas mãos. Sempre que se avizinhava
momento penoso ou coisa feia, Sinhorito retirava os olhos. Uma coruja negra
entrava na treva da noite, janelas por onde saía o mundo e vazava o corpo.
Nunca ninguém assistiu. Dizia-se, talvezmente. Mas, enfim. Ninguém é só
atrasado: outras habilidades se esconderão, em outra dimensão do ser.
Desconfie-se.
- Assim sem as vistas, quem
sabe, evito as feiuras dessa vida.
Todavia, ninguém acreditava em tais prodígios. Apenas
Eulália, a mulher dos Correios, se declarava crente. E ela lhe pedia, enquanto
no assento da praça:
- Vá, tire agora.
E ele, de pálpebras fechadas, exibia o cerrado dos punhos.
Que estavam ali, seus dois olhos, vivos como peixes fora de água. A mulher
sorria e mandava que fossem repostos. Que ela merecia era ser vista, ainda que
gasta e engordada. E o moço grunhia que era o modo de sua risada. E recarregava
os olhos no lugar do rosto.
Pois era a este Sinhorito que consultavam agora sobre o
antidilúvio. E rodeavam-no, preparados para troçar. Não teriam outra glória,
nem vitória. A chacota do palerma lhes servia. O moço enchia o rosto, olhos
rondando no vácuo, à procura de um esboço para uma ideia. Depois, ousou falar:
-
Se calhar...
-
Se calhar?
-
Ou
quem sabe, o céu está de pernas para o ar?
Os
primeiros risos. O disparate já começava a desenhar-se, segundo as
expectativas.
A
aldeia, quanto mais pequena, mais carece de um louco.
Como se por via desse louco se salvassem, os restantes, da
loucura. Mas eis que, no momento, a palma da mão ordenava contenção:
-
Esperem.
Esperem que o gajo ainda vai dizer mais. Acaba lá, Doutor Sinhorito.
-
É
que, quem sabe...
-
Quem
sabe o quê?
-
Quem
sabe a chuva está caindo para o lado de lá do
céu...
Deflagraram as gargalhadas. E repetiram, uns e outros, o
absurdo do desatinado. No fim, dispersaram. Ficou só Eulália, a dos Correios,
toda sentada e imóvel junto do apalermado. Então, ela lhe segurou a mão e lhe
pediu que não ficasse triste. E assim, como confissão primeira, disse:
-
Eu
acredito em si. Já me choveu uma água dessas, de outro céu...
E beijou na testa o moço. Depois, ela se enroscou junto aos
pés dele. Sinhorito, delicado, fez questão. Queria corrigir a sua postura,
tirá-la do chão. Mas Eulália desfez seus intentos.
-
Deixe-me
assim, na sua sombra. Nunca tive quem me protegesse.
Sinhorito quedou-se imóvel. Tão compenetrado em fazer
sombra que adormeceu, singelo e desprovido. E ela se retirou, sutil como brisa.
Muitas sombras passaram, muito sonho desandou. Só a seca
não passava. E já nem havia atmosfera, apenas calores. Já a sede ombreava com a
fome. E nem verde nem carne, tudo se consumira, do sol ao solo. E os seres
ganharam fraqueza: os bichos vitamínimos, as plantas franzininhas. Até Eulália
aconteceu de adoecer. Magra de se contar mais ossos que os que realmente
detinha. E já nem forças tinha para sofrer. Carecia de urgente substância.
Quando soube do estado de Eulália, o moço se encheu de
gravidade e mandou convocar a aldeia de Nkulumazi. À praça cheia, ele anunciou:
-
Senhores,
eu vou ser pescador! Digo, quem sabe...
E adiantou: não houvesse mais aflição de peixe e não-peixe.
As panelas iriam, muito próximo, rever esse bicho escamoso, já preparado em
postas, mesmo antes de sair das águas.
-
Das
águas? Quais elas?
Mais risos. Pescasse ele em seu próprio suor. Pois não
havia nem rio nem lagoa que restasse. Sinhorito apontou os céus, acima da
cabeça.
- Vou lá, vou subir às águas de lá.
Entrou no barco e ajeitou-o em posição vertical, proa
virada ao firmamento. Face ao espanto geral, Sinhorito começou a remar. Os
remos cruzavam o ar, vincados no vazio. As bocas abertas, em multidão de
exclamações, se inexplicavam: o barco subia em invisível afluente de nuvem. Os
remos, mais e mais, semelhavam asas. E o barco transparecia em ave. Até que as
nuvens engoliram aquela inteira visão. Então, alguém gritou:
- Venham,
ver. Vejam, Sinhorito
que sobe!
Mas
já ele se extinguia, gradualmente nulo. Depois, se apagou, ponto no infinito.
-
Onde
ele está?
Foi, nunca mais desceu. Ainda esperaram que Sinhorito
tombasse, desamparado, mais sua embarcação. Como nada sucedesse, um por um, os
aldeões regressaram a suas casas. Ficou Eulália, só e sozinha. E ali na praça
ela montou espera de um acontecimento. A mulher olhava o céu, fosse sol, fosse
estrelas. Mas Sinhorito não descia. Nem ele nem a chuva que se propôs buscar. E
ainda menos um qualquer peixe.
Vieram buscá-la. Vieram familiares, veio o chefe dos
Correios. Puxaram-na, força contra a vontade. Eulália contrariou os intentos.
Apontava, desapontada, o vasto céu.
-
Há
de vir, há de voltar...
Que ela jurara não o abandonar lá, onde há tanto que remar.
Mas o cunhado maior interpôs proibição: nem sonhasse. Sinhorito era louco. A
moça esquecesse que o fulano existira, fizera ou sonhara. Eulália parecia
conformada. Mas, por dentro, ela arrumara segredo: construiria um barco, ao
modo que Sinhorito fizera. Foi juntando pau e tábua, às escondidas.
-
Um
dia, quem sabe, um dia... - repetia enquanto acarretava materiais.
Foi tudo descoberto, num entretanto. Pelas fúrias tudo foi
ardido. Queimavam-se as madeiras como se se eliminasse um foco de
impurificação.
Eulália, entretanto, regressara à serenidade. Parecia ter
cancelado seu delírio. Ou ganhara juízo mais calmo? Só os olhos grandes
vasculhavam as nuvens enquanto passeava pelos campos. Um dia, porém, ela
entrou, em alvoroço, pela cozinha. Anunciou:
-
Caíram
duas chuvinhas do céu.
Riram-se. Como chovem só duas unidades, gotas de contar por
dedos de camaleão? A mulher insistiu, gritou, empurrou. Já todos na varanda,
apontou entre os capins os dois olhos de Sinhorito. Haviam caído do céu como
dois frutos de carne. E estavam esbugalhados, espantados com coisa vista lá de
onde tombaram.
A mulher, escapando dos braços que a continham, correu a
apanhar o achado. Mas quando ainda se debruçava, o céu se abriu em relampejos.
E choveu, chuva gorda, farta, despenteada trança de água no colo do universo. E
peixes, aos cardumes, resvalaram dos céus.
É esta história que, agora, Eulália conta quando, na
aldeia, os outros lhe pedem para falar do dia que choveu peixe. E riem-se do
pasmo ao espasmo. Com a fartura de quem sabe da magreza de suas vidas. Vale não
haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como contas
de missanga, alinhadas no fio da descrença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui o seu comentário!